O grupo se reuniu pela vontade do fazer teatral através do desejo do diretor, Fábio Nougueira, de montar Fábrica de Chocolate, de Mário Prata, pela segunda vez (a primeira foi em 1986). Um desafio para qualquer companhia teatral, principalmente nos dias de hoje, onde o tema é abordado apenas em salas de aula.
A peça, encenada pela primeira vez em 1979, aborda, numa primeira visão, a ditadura militar. Mas, não pelos olhos sofridos dos torturados e sim pelas mãos firmes dos torturadores. As mesmas mãos que abrem um livro para ler, que apertam o botão do controle remoto da televisão, acariciam a face da esposa, do marido, e as mesmas que embalam o filho.
É nessa via de raciocínio que, durante ensaios e reuniões, a Theatro 2 Produções trabalhou o texto para os dias atuais. Na época da Ditadura, o torturador não tinha nome, mas possuía forma, até endereço conhecido; hoje, a Ditadura existe, com outras formas diversas, no entanto, os torturados não a querem mais ver, preferem a submissão calada.
O diretor não queria repetir a fórmula da primeira produção. Desta vez concebeu a montagem tentando materializar a forma com que as pessoas torturadas viam seus torturadores, e as salas, nos momentos em que eram violentadas em seus direitos como cidadãos e como seres humanos.
A Cia acredita que é através de uma montagem «suja» que procura demonstrar como a Ditadura se transformou em vários rostos na multidão, como se camuflou no trabalho, em valores, dia a dia, e em modismos. Ela pode estar ao seu lado e você a cumprimenta e pede para entrar em sua vida.
Contudo, aos que insistem que a velha Ditadura morreu em 1985, enganam-se. Até o momento, assistimos famílias desejosas sobre o paradeiro, o que teria acontecido com seus entes desaparecidos? Essa, também é uma forma de tortura, que ultrapassa décadas e atinge o século XXI.
Mário Prata concebeu a idéia de Fábrica de Chocolate no dia do enterro de Vladimir Herzog, contou em uma reportagem que foi através das perguntas: «quem são esses caras; como é que eles se comportam entre eles numa hora dessas em que tem que montar toda uma encenação para produzir um suicídio?».
Através de todo esse molde, a Theatro 2 estruturou seu espetáculo em três planos no palco. No primeiro, uma mesa, dois banquinhos, uma estante com os objetos de tortura: o plano da realidade, onde ocorre todo o texto. No segundo, seis banquinhos se fazem visíveis, onde ficam outros personagens, criados pelos atores e auxiliados pelo coreógrafo João Butoh. Alí ficam, antes de entrarem em cena, cada um utiliza uma marmita, que contém uma gosma, ingerida e regurgitada em cenas específicas do plano um. No terceiro, atrás de uma «cortina» de radiografias, é a sala de tortura e também para onde os personagens vão ao interim de uma cena para outra. Esse espaço serve igualmente para momentos nada realistas, de absoluto expressionismo, que refletem algumas encenações e inconsciências do plano um. Para o público, a montagem se revela em um jogo de luzes chapadas e de sombras vivas, onde existem três planos que se interagem, ainda que separados. Os atores não saem do palco. Os elementos do cenário são escassos, o que propicia a elevação do trabalho dos atores. O figurino segue a mesma linha de escassez. Os seis atores vestem bermudas e camisetas sujas e um gorro de meia, além dos pares de botas.
O intuito da montagem, quanto aos personagens, foi de total liberdade, em contra partida ao texto duro e altamente forte, que traz a idéia de prisão e violência.
A proposta dessa Fábrica de Chocolate não é chocar, é proporcionar um momento de reflexão, de exame da questão em que várias pessoas tomam parte num pós-espetáculo.
A Ditadura ainda pulsa vertiginosa. Mesmo em sua primeira montagem, ela se revelava de uma vida grotesca e longa nas palavras de Ruy Guerra, diretor da montagem de 1979: «Quando um homem se avilta, aviltando outro homem, todos nós somos esses dois homens. E para recusarmos essas duas faces, para cunharmos uma nova moeda, Mário Prata procurou compreender e mostrar o lado mais infamante. O lado dos torturadores. O torturado é um resultado, não um ponto de partida.»
Gisele Galindo