Personagens

Gabriel Mota  - Rosemary
Rosemiro dos Anjos tem 19 para 20 anos e está aqui aproximadamente há um ano. Quando chegou, mal acabara de concluir o curso Mobral, de onde saiu semianalfabeto. Apesar de ser muito lento nas leituras, adora revista em quadrinhos. O incrível Hulk. Sua mãe era prostituta no agreste e ele não apenas tinha noção disso como, ainda menino, costumava roubar as carteiras dos clientes dela. Pai desconhecido. Sua mãe morreu de câncer no pulmão há três anos. Gosta de cantar músicas de zona durante os interrogatórios; daí o seu apelido de Rosemary. É beque central do time de futebol aqui do departamento. Consta na sua ficha que, aos sete para os oito anos, cegou um garoto na Paraíba, insuflando fogo na sua cara com uma lata de flits. Muito religioso. Frequenta tendas e aprecia muito o reverendo Rex Humbard. Acha o Kojak um cagão. Sobre seu serviço, afirmou certa vez: parto do princípio que chute no saco sempre dói.


Juliano Bonfim - Baseado
Raul Santana da Silva, o Baseado tem uma das fichas mais brilhantes daqui de dentro. Consta no seu currículo. Aparelhos localizados: doze. Inimigos presos em flagrante: 75, sendo que 43 de uma só vez. Campeão interno de karatê, judô, braço-de-ferro e bolinha de gude. Cinco condecorações. Nove missões especiais. Casado com dona Creuza, pai de dois filhos homens. Costuma usar técnicas audiovisuais incríveis. Adora projetar fotos de filhos e filhas dos interrogados durante as sessões. Capturou uma importante militante comunista – guerrilheira –, interrogando a filha dela, de apenas cinco anos, durante quarenta e oito horas seguidas. É católico, apostólico, romano. Tem no peito uma medalhinha benzida em Roma pelo Papa Paulo VI. Colabora com obras de caridade no bairro. Ganha quarenta e cinco mil cruzeiros por mês.


Gisele Galindo - Herrera
Quarenta anos tem o nosso querido Antônio Joaquim Herrera dos Santos Filho. Chefe da equipe especializada A, o que lhe dá a categoria de melhor instrutor e supervisor de trabalho aqui de dentro. No ramo desde final da década de sessenta, quando veio como voluntário. Antes era treinador de cães, adestrador, como o Ringo, por exemplo, um cão pastor adestrado para morder os testículos do prisioneiro até que alguém o mandasse parar. Tem casa com piscina num bairro afastado e pobre. É, como ele mesmo diz, uma espécie de xerife do local. Já trabalhou em mais de cem casos, já fez estágio na CIA, já teve contato direto com o neonazismo em Munique. Já esteve no chile com bolsa do governo local – local lá deles –. Sua maior glória, por mais infantil que possa parecer –. Seu apelido aqui dentro é OMO: não deixa marcas. Afirma, inclusive com orgulho, que já “papou” três freiras aí na sala do fundo.


Doutor - Tatiana Ottoboni 
O jovem Doutor tinha então 20 e poucos anos. Gana, um pequeno país da África, com pouco mais de 10 milhões de habitantes, era o maior produtor e exportador de cacau do mundo. Houve uma crise política envolvendo civis e militares. Com ela, a queda na produção nacional. O Brasil, segundo exportador mundial de cacau em grão, passou a exportar mais e mais para Europa, Estados Unidos e vários países da África. Com o Brasil exportando mais, o doutor passou a exportar mais. O governo brasileiro começou a financiar o doutor. E ele começou a ficar rico. Em 1972, um militar finalmente derrubou o governo civil lá em Gana. Os cargos de presidente e primeiro ministro são riscados do mapa. A constituição local rasgada. A crise atinge o seu auge. Foi quando, do sul da Bahia, o jovem doutor começou a mandar dinheiro – em dólar – para sustentar a guerra civil. A guerra não podia mais parar. E quanto mais ganenses morriam, mais ele vendia o seu cacau. Hoje, um oitavo do sul da Bahia é deste jovem e inteligente doutor. Cinco fábricas de chocolates entre Salvador e São Paulo. Credicard, American Express, Elo, Passaporte, Nacional, Diners. Os militares continuam no poder. Em Gana.


Piedade - Andrea Renolfi 
Maria da Piedade nasceu em Viana do Castelo, um pequeno distrito de Portugal. Sua mãe, camponesa como o pai, queria que ela fosse freira. Foi expulsa do convento de salesianas após comprovada atividade homossexual. Com o 25 de abril de 1974, ela foi empurrada para fora do país e caiu aqui. Veio recomendada por autoridades civis e militares do governo deposto. Antes, quando os portugueses esmagaram uma insurreição em Angola, ela já estava lá. Na ficha, enfermeira. Já trabalhava com técnicas de interrogatórios. Escreveu até um livro a respeito, na década de 60. Tinha livre acesso junto ao gabinete de Marcelo Caetano. Veio para o Brasil em 68 e 71 para ensinar suas técnicas. Maria da Piedade de Oliveira Bragança atualmente usa nossa nacionalidade e está casada com a brasileira Maria de Fátima Thales Guerreiro, da nossa melhor sociedade. Já deu cursos em diversos países da América Latina. Fala seis idiomas com perfeição. Arranha o russo.


Dodói.
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 Dodói - Pablo Miranda
Antonio Pereira da Silva era operário da Fábrica de Chocolate Bem-Me-quer, tinha esposa e três filhos e queria aumento de salário. Era jornalista e queria fazer a sua reportagem. Era estudante e queria fazer uma universidade melhor. Ele era advogado e queria que as leis fossem cumpridas. Ele era militar e queria que o país vivesse em paz. Antonio tinha seis anos e uma bala extraviada furou a sua garganta.